Uma espiritualidade

Em qualquer trabalho histórico incipiente sobre as civilizações, a espiritualidade como objeto das religiões ganhará algum destaque para entender a cultura do povo estudado. Como decorrência da diversidade humana ela também sofre variações de tal modo que é correto falar em espiritualidades.

As denominações religiosas têm as suas próprias lentes por meio das quais entendem e explicam a realidade, mas as suas sentenças doutrinárias tendem a não colocar a paz e a harmonia como pilares de convergência entre elas, pois, se é característica de cada uma a autoproclamação de ser a exclusiva legitimada para expressar a vontade de Deus, por razões óbvias, o conflito entre os filhos do Criador parece ser algo muito natural no universo das religiões.

Essa naturalidade belicosa torna-se mais grave quando a fé está a serviço da política. Sobre isso, nem é preciso tecer maiores comentários a respeito dos exemplos das Cruzadas, da Santa Inquisição, do Oriente Médio e do discurso de ódio que, atualmente, assola o Ocidente.

Para superar esse estado de conflito entre pessoas que decorre do embate da irredutibilidade dos dogmas, o exercício da espiritualidade apresenta-se como um dos meios para a paz, pois se preocupar com o espírito é transcender e desprestigiar o que é efêmero e passageiro, mitigando as doutrinas e os interesses políticos. Dedicar-se ao espiritual requer o conhecimento de que ninguém veio ao mundo para não desenvolver a própria alma. A evolução é um mantra da espiritualidade. Não pode haver espaço para o ódio e para a guerra.  

O conflito que deve existir é o interno, como bem foi revelado no Bhagavad Gita, a luta justa é travada contra nossos vícios e apegos ao que é material e ao que nos afasta do cumprimento do dever que nos foi conferido por Deus.

No atual cenário utilitarista das coisas, essa espiritualidade foi substituída por outra. De olho no lucro, o cuidado com o espírito virou uma busca desmedida por likes e a fidelização dos crentes foi substituída pela fanatização dos clientes. O desenvolvimento da alma sã transformou-se numa atividade mercadológica.

A multiplicação dos coachs que destacam a riqueza material como a salvação espiritual traduz uma grave preocupação: é comum ouvirmos que o importante é o viver bem nesta curta oportunidade sobre a terra, o que, para eles, significa acumular para desfrutar as delícias da passagem. Qual é o mal em ser feliz?

O problema é colocar a matéria como condição para a felicidade. A frustração nesse projeto é uma forte concausa da depressão. Outro ponto que merece destaque é que viver bem é diferente de viver para o bem, um opera no campo mais restrito à satisfação individual e o outro ocorre na relação simbiótica com o cosmos.

Dentro da lógica do “quem ama se importa”, a união com Deus é o propósito da espiritualidade, o que impõe a preocupação com toda a sua obra, ligando-se a absolutamente tudo o que é interesse do Divino. Sim, essa espiritualidade se preocupa com o Universo, mas, especificamente com a parcela do cosmos que diz respeito a cada um. No exercício utópico da própria responsabilidade, conforme um ditado popular, se todo morador cuidar da frente de sua casa a cidade estará sempre limpa.

Se considerarmos a máxima hermética da correspondência (“O que está acima é como o que está embaixo. O que está dentro como o que está fora como dentro.”) e se você zelar de sua parcela do universo com a devida atenção por meio da prática do amor em sua família, da caridade em relação aos desafortunados, do respeito à natureza, da harmonia entre os irmãos, da devoção à Deus, tenha certeza de que a sua realidade será refletida no cosmos e as virtudes que estarão no seu íntimo serão externadas como exemplos transformadores para as demais pessoas num círculo virtuoso. Sim, o seu universo tem salvação.

O desenvolvimento espiritual repercute na matéria e no mundo transcendente como um mecanismo revolucionário, não há causa mais justa pela qual valha a pena viver.