A meia

Uma meia solitária sobre a cômoda
Destaca-se no cenário minimalista
Tudo em ordem no universo simétrico
Mas a meia branca destoa bastante
Ao lado direito do móvel escuro
E, como é de costume
Para uma mente inquieta,
Logo, comecei a questionar:
Como a meia foi parar ali?
Será a meia a expressão do caos?
Será que Deus quer me dizer algo?
Serei eu digno de uma revelação?
Será que o Criador é minimalista?
Por que eu deveria me importar com a meia?
Depois da reflexão filosófica
A meia continuava lá, impávida
A anunciar que foi minha companheira
Por centenas de quilômetros na vida
Protegeu e trouxe conforto ao meu pé
Aqueceu-me no frio de julho
Virou boneco na mão de Joca
Talvez tenha sido uma bola
A fazer a alegria
No futebol das crianças
Mas a meia continuava lá
Com um ou dois furos
A denunciar a sua idade
Provando que tudo
Absolutamente tudo
Pode virar poesia
Até mesmo uma meia furada.

Manoel de Barros

Manoel veio à terra
Para estar entre as formigas
As pedrinhas, os girinos, os grilos
À sombra do jenipapeiro
Se fosse um objeto
seria uma escada
dessas que a gente sobe
para contemplar o poente
e lá do alto
ficar bem pertinho
do que está longe
a gente sobe muito, muito
porque ele é um anjo
em forma de Aracuã
E, por isso, ele sabe bem
O que é “voar fora da asa”
Não há como ler Manoel
e não sentir a simplicidade
das coisas mais pequenas
na própria história de cada um
como uma espécie de farol
a nos guiar aos momentos
mais felizes e puros de nossas vidas
Manoel é a liberdade para a pureza
o mais belo louvor à natureza
Manoel é poesia de criança
Que se abriu como um sorriso
Sincero de quem brinca numa canoa
No Pantanal de nossas vidas.

Helton Chacarosque

Bailarina

No giro delicado da bailarina
equilibrada na ponta dos pés
ao som de Tchaikovski
o Universo inteiro se eleva
é como se cada medida de tempo
cada milímetro de espaço
de tudo ao meu redor
até a galáxia mais distante
só tivesse a razão de acontecer
pelo giro da pequena menina
Já não importam os tratados
os discursos burocráticos
os arsenais atômicos
os cofres de ouro
nem a inteligência artificial.
De alguma forma,
Rumi parece nos convidar
a celebrar a grandeza de Deus
nos versos da dança mais linda
que Júlia declama com maestria.
Agora, entendi muito bem
que o pão preserva a existência
e que a arte está bem além
do conceito de transcendência
a arte é a escada dos anjos
é o giro da bailarina
que explica o Universo
simplifica o complexo
e faz o papai sorrir.

Helton Chacarosque

A Agenda

Uma gota d’água
Um grão de poeira
Uma semente de uva
Uma caneta vazia
A sombra do cascalho
A gente não se importa
Pelo que está bem fora
da agenda de negócios

Um pedido de abraço
O próprio abraço
O braço do filho
O abanar da cauda
O latido feliz
O próprio cachorro
O “eu te amo” da esposa
O amor pela esposa
A própria esposa
A gente não se importa
Pelo que está bem fora
da agenda de negócios

O clamor pela esmola
O pedido de socorro
A pandemia
O meteoro
A morte
A presença de Deus
A gente não se importa
Pelo que está bem fora
da agenda de negócios

E, assim, o que é absurdo
Perdeu o seu sentido
Mas, enquanto existir
Criança a sentir as gotas
De chuva na testa
A espirrar a poeira
A assoprar a semente de uva
Pela caneta vazia com a mira
Na sombra do cascalho
Enquanto houver uma criança
A fazer aviãozinho de papel
Com as folhas burocráticas
Da agenda de negócios
Enquanto houver uma criança
Haverá uma razão para viver.

Helton Chacarosque

Uma espiritualidade

Em qualquer trabalho histórico incipiente sobre as civilizações, a espiritualidade como objeto das religiões ganhará algum destaque para entender a cultura do povo estudado. Como decorrência da diversidade humana ela também sofre variações de tal modo que é correto falar em espiritualidades.

As denominações religiosas têm as suas próprias lentes por meio das quais entendem e explicam a realidade, mas as suas sentenças doutrinárias tendem a não colocar a paz e a harmonia como pilares de convergência entre elas, pois, se é característica de cada uma a autoproclamação de ser a exclusiva legitimada para expressar a vontade de Deus, por razões óbvias, o conflito entre os filhos do Criador parece ser algo muito natural no universo das religiões.

Essa naturalidade belicosa torna-se mais grave quando a fé está a serviço da política. Sobre isso, nem é preciso tecer maiores comentários a respeito dos exemplos das Cruzadas, da Santa Inquisição, do Oriente Médio e do discurso de ódio que, atualmente, assola o Ocidente.

Para superar esse estado de conflito entre pessoas que decorre do embate da irredutibilidade dos dogmas, o exercício da espiritualidade apresenta-se como um dos meios para a paz, pois se preocupar com o espírito é transcender e desprestigiar o que é efêmero e passageiro, mitigando as doutrinas e os interesses políticos. Dedicar-se ao espiritual requer o conhecimento de que ninguém veio ao mundo para não desenvolver a própria alma. A evolução é um mantra da espiritualidade. Não pode haver espaço para o ódio e para a guerra.  

O conflito que deve existir é o interno, como bem foi revelado no Bhagavad Gita, a luta justa é travada contra nossos vícios e apegos ao que é material e ao que nos afasta do cumprimento do dever que nos foi conferido por Deus.

No atual cenário utilitarista das coisas, essa espiritualidade foi substituída por outra. De olho no lucro, o cuidado com o espírito virou uma busca desmedida por likes e a fidelização dos crentes foi substituída pela fanatização dos clientes. O desenvolvimento da alma sã transformou-se numa atividade mercadológica.

A multiplicação dos coachs que destacam a riqueza material como a salvação espiritual traduz uma grave preocupação: é comum ouvirmos que o importante é o viver bem nesta curta oportunidade sobre a terra, o que, para eles, significa acumular para desfrutar as delícias da passagem. Qual é o mal em ser feliz?

O problema é colocar a matéria como condição para a felicidade. A frustração nesse projeto é uma forte concausa da depressão. Outro ponto que merece destaque é que viver bem é diferente de viver para o bem, um opera no campo mais restrito à satisfação individual e o outro ocorre na relação simbiótica com o cosmos.

Dentro da lógica do “quem ama se importa”, a união com Deus é o propósito da espiritualidade, o que impõe a preocupação com toda a sua obra, ligando-se a absolutamente tudo o que é interesse do Divino. Sim, essa espiritualidade se preocupa com o Universo, mas, especificamente com a parcela do cosmos que diz respeito a cada um. No exercício utópico da própria responsabilidade, conforme um ditado popular, se todo morador cuidar da frente de sua casa a cidade estará sempre limpa.

Se considerarmos a máxima hermética da correspondência (“O que está acima é como o que está embaixo. O que está dentro como o que está fora como dentro.”) e se você zelar de sua parcela do universo com a devida atenção por meio da prática do amor em sua família, da caridade em relação aos desafortunados, do respeito à natureza, da harmonia entre os irmãos, da devoção à Deus, tenha certeza de que a sua realidade será refletida no cosmos e as virtudes que estarão no seu íntimo serão externadas como exemplos transformadores para as demais pessoas num círculo virtuoso. Sim, o seu universo tem salvação.

O desenvolvimento espiritual repercute na matéria e no mundo transcendente como um mecanismo revolucionário, não há causa mais justa pela qual valha a pena viver.