Qual espiritualidade?

É comum notar nas conversas dos amigos mais grisalhos que as circunstâncias típicas da passagem do tempo destacam uma preocupação maior com a espiritualidade. A maturidade pauta entre os assuntos a necessidade de estreitarmos a nossa relação com o que é intangível, trazendo-nos a reflexão sobre o sentido da vida num cenário em que a morte se apresenta ao horizonte a partir do crescente número de velórios que passamos a frequentar.

A espiritualidade é um verbete que traduz a experiência individual em nosso trato com vida em todas as camadas da existência, guiado por valores e inspirações que transcendem os limites materiais, religiosos e culturais.

José Paulo Giovanetti, citado por Ênio Brito Pinto (Espiritualidade e Religiosidade: Articulações. In Revista de Estudos da Religião. São Paulo: 2009. Disponível em https://www.pucsp.br/rever/rv4_2009/t_brito.pdf. Acesso em: 9 fev. 2025), esclarece que: “o termo ‘espiritualidade’ designa toda vivência que pode produzir mudança profunda no interior do homem e o leva à integração pessoal e à integração com outros homens. […] A espiritualidade tem relação com valores e significados: o espírito nos permite fazer a experiência da profundidade, da captação do simbólico, de mostrar que o que move a vida é um sentido, pois só o espírito é capaz de descobrir um sentido para a existência”. Para o autor, a espiritualidade não está ligada ao plano superior e significa a possibilidade de a pessoa mergulhar em si, ao passo que a religiosidade implica a relação do ser humano com o transcendente.

Por diversos fatores na história, coube às religiões a tarefa de oferecer-nos o repertório “impositivo” de valores para o exercício da espiritualidade, por essa razão, considerando a carga de conceitos coincidentes, é conveniente empregar a religiosidade como sinônimo de espiritualidade, muito embora essa não seja uma técnica pacífica entre os estudiosos.

O problema a afetar o tema em estudo está no fato de as denominações religiosas terem as suas próprias lentes, às vezes, “embaçadas”, por meio das quais entendem e explicam uma realidade formatada por sentenças doutrinárias que tendem a não colocar a paz e a harmonia como pilares de convergência entre elas, pois, se é característica de cada uma a autoproclamação de ser a exclusiva legitimada para expressar a vontade de Deus, por razões óbvias, o conflito parece ser algo normal no universo de tais teologias. Isso gera o exercício da espiritualidade de atritos constantes ao que é diverso. A hostilidade permanente traz união e engajamento aos seus membros, o que é vantajoso e conveniente para os líderes das comunidades religiosas.

Essa naturalidade belicosa torna-se mais grave quando a fé está a serviço da política. Sobre isso, nem é preciso tecer maiores comentários a respeito das consequências da intolerância testemunhada nos cenários das Cruzadas, da Santa Inquisição, dos conflitos no Oriente Médio, daquilo que levou aos atentados no sombrio 11 de setembro e do discurso de ódio que assola o Ocidente hodierno.

Para superar esse estado de lide que decorre do embate irredutível dos dogmas, a dedicação à espiritualidade em seu aspecto mais simples, focada na apuração e depuração do “eu” no contexto da exiguidade vital, apresenta-se como um dos meios para

a paz que os amigos grisalhos começam a buscar, pois a preocupação com o espírito significa considerar a valoração da vida sob o prisma do amor, sem, necessariamente, desprestigiar tudo o que é efêmero e passageiro. Afinal, a própria vida é frágil e exígua e, é claro, não deve ser desvalorizada. Dedicar-se ao espiritual requer o conhecimento do seguinte ponto de partida: ninguém veio ao mundo para não desenvolver a própria alma. A evolução deve ser um mantra para a espiritualidade.

O conflito que deve existir é o interno, como bem foi revelado no Bhagavad Gita, a luta justa é travada contra nossos vícios e apegos ao que é material e ao que nos afasta do cumprimento do dever que nos foi conferido por Deus.

Obviamente, essa ideia de que é preciso evoluir não é invenção deste irmão, pois se trata de um princípio universal previsto nos mais variados textos sagrados das culturas conhecidas: no Alcorão, prega-se que o progresso espiritual deve ocorrer em vida; na parábola dos talentos, Jesus ensina que sempre devemos agir para fazer o melhor; no Livro dos Espíritos, a evolução é o princípio norteador de todas as páginas da obra.

No atual cenário utilitarista das coisas, essa espiritualidade simples e milenar foi substituída pela que busca a prosperidade financeira a qualquer custo. Com os olhos voltados ao lucro, o cuidado com o espírito virou uma busca desmedida por likes e a fidelização dos crentes foi substituída pela fanatização dos clientes. O desenvolvimento da alma sã transformou-se numa atividade mercadológica.

A multiplicação dos coaches que destacam a riqueza material como o caminho para salvação espiritual traduz uma grave preocupação: é comum ouvirmos que o importante é o viver bem nesta curta oportunidade sobre a terra, o que, para eles, significa acumular para desfrutar as delícias da passagem. Afinal, qual seria o mal em ser feliz assim?

O problema é colocar a matéria como condição para a felicidade. A frustração nesse projeto é uma forte concausa da depressão. Outro ponto que merece destaque é que viver bem é diferente de viver para o bem, um opera no campo mais restrito à satisfação individual e o outro ocorre na relação simbiótica com o cosmos.

Dentro da lógica do “quem ama se importa”, a união com Deus é o propósito da espiritualidade defendida neste ensaio, o que impõe a preocupação com toda a obra divina, ligando-se a absolutamente tudo o que é interesse do Criador. Sim, essa espiritualidade se preocupa com o Universo, mais, especificamente, com a parcela do cosmos que diz respeito a cada um. No exercício utópico da própria responsabilidade, conforme um ditado popular, “se todo morador cuidar da frente de sua casa, a cidade estará sempre limpa”.

Se considerarmos a máxima hermética da correspondência (“O que está acima é como o que está embaixo. O que está dentro é como o que está fora.”) e se você zelar de sua parte do universo com a devida atenção por meio da prática do amor em sua família, da caridade em relação aos desafortunados, da dedicação ao trabalho, do respeito à natureza, da harmonia entre os irmãos, da devoção a Deus, tenha certeza de que a sua realidade será refletida no cosmos e as virtudes que estarão no seu íntimo serão externadas como exemplos transformadores para as demais pessoas num círculo virtuoso. Sim, o seu universo tem salvação.

O desenvolvimento espiritual repercute na matéria e no mundo transcendente como um mecanismo revolucionário, não há causa mais justa pela qual valha a pena viver.

Uma resposta para “Qual espiritualidade?”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *